terça-feira, 2 de agosto de 2011

TNM – 0043 Atualizou seu avatar.

“EXTRA! EXTRA! A felicidade já pode ser comprada em qualquer farmácia perto de você! - dizia a manchete do jornal da manhã nesta tríbali.
Retorno ao dormitório com um sorriso mascarado, talvez até de mim mesmo. Tomo o combinado energético com o tradicional lanche suplementar. Não há um dia em que não fique satisfeito com essa refeição que toma parte do meu custoso salário, mas afinal, como afugentá-lo? Ou melhor, para que? Ainda me sobram o suficiente para as vontades das crianças.
Que falta elas fazem! Por mais que trabalhem há 25 anos, não me acostumo com suas ausências quinzenais. É como se os quisesse aqui todo dia, embora não saiba dizer o motivo e nem o que faria se isso acontecesse. Ah! Algo parecido já aconteceu! Lembro do dia em que meu pai, naqueles tempos em que ele ainda não tinha O Implante, resolveu reunir eu e minha irmã, com nossos respectivos filhos, para “passarmos um dia em família à moda antiga” - dizia ele – e foi estranho, para não dizer que fora ruim, pois ficamos sentados, e não só isso, mas próximos! Próximos à ponto de podermos nos ouvir e ver nitidamente, sem qualquer equipamento tecnológico. Cada um era visto com a roupa que usava na realidade física e cheirava assim mesmo. Sem dúvida o momento mais estranho – e não tenho outra palavra – que posso me lembrar ou minha memória externa pode fazer por mim.
Nós sete; Papai, eu, giovana e seus três filhos e meu pequeno...filho...o john, não tinha a clarissa, roberto, carolus e TXV-042 – que nasceu após a Lei dos Nomes ser implantada, o que pessoalmente achei bom, além de ser facílimo de lembrar, facilita toda documentação e catalogação que as crianças passam no mundo. Soube recentemente que Clarissa vai atualizar seu nome para TXM-0654 (Olha como já muda! Seu nome brilha em minha memória e é delicioso pensar nele. Não sei como fui imprudente à ponto de chamá-la só com letras, colocando vogais e tantas ainda! Felizmente o grande chefe fez a Lei dos Nomes e a tendência que já existia apenas se institucionalizou.
Então, o estranho encontro começou assim, reunidos em acentos antigos que papai guardava em casa – Isso é algo estranho nele. Guardar coisas! Como se o fato de comprá-las desse a ele o poder de possuí-las! Raramente descartar algo e quando o questionei sobre isso ele ficou bravo e falou que no tempo dele a lua era bem maior (porque nossas roupas e moradias são feitas com Kleurípodo, areia lunar) e que é inadmissível o que “eles” fazem com os mortos! Não sei quem são eles e não entendo o problema de tornar os mortos em combustíveis para indústrias, transportes e moradias.
Nos sentamos naqueles objetos. Sim, sentamos! Posição extremamente desconfortável, e não é só porque olhamos as outras pessoas, mas seriam necessários anos de caminhadas para ter os músculos das costas fortalecidos para tal; Foi um esforço enorme. Então ele começou a falar do seu cotidiano, com algumas risadas, alguns lamentos, tudo em forma narrativa e sem sentido. Coisas que nem postava em seu avatar! Deviam ser mentiras ou distorções de uma memória senil, afinal ele insiste em não chipar-se e muito menos à anexar uma memória externa. Mal sabe o prazer de nada ter na cabeça!
Em seguida nos questionou sobre o que tínhamos feito naqueles últimos “dias”! Dias! Foi engraçado. Todos rimos e então ele se corrigiu e perguntou de nossos últimos tríbalis. Os filhos de giovana (hoje em dia é estranho dizer “irmã”, não só devido a Lei do Parentesco, que acabou com toda perpetualidade de relacionamentos unilaterais, em que não há uma vontade mútua de se relacionarem, trazendo a oportunidade de termos tantas famílias quanto quisermos, basta A Instituição validar o contrato feito, sem mencionar as guildas, que seriam famílias temporárias), mas então, os filhos de minha irmã, ao serem questionadas sobre seus tríbalis mais recentes, enviarem ao visualizador que estava presente entre nós, os relatórios operacionais que postavam em seus avatares. Papai desligou o visualizador e pediu que dissessem, com a voz, não com o captador neural.
A fala foi unânime: “O de Sempre”. Dito em uníssono por cordas vocais dsstreinadas e desafinadas, mas com a convicção de mentes aguçadas ao ofício rotineiro.
Papai ainda tentou mas nada mais foi dito. Então, resolveu tornar a reunião mais estranha e constrangedora para nós. Quis retirar o respirador para “sentir o ar como se fazia antigamente”. Tal ousadia incitou tanto os pequenos que antes que chamassem o pelotão da Ordem e Paz, estes já estavam à caminho – desde a Lei de Manutenção da Vida, fora proibido respirar sem o equipamento adequado, pois o ar ambiente é tão nocivo aos pulmões que os humanos teriam vários problemas e sofreriam muito até desfaleceram, sem contar que só podiam se aventurar aqueles com condições econômicas para manter o tratamento dos problemas respiratórios e quem sabe a respiração dos brônquios, afetados pelo ar atmosférico. Papai ousou demais. Eu, giovana e nossos filhos, pela Lei da Genética, Produção e Rendimento, fomos qualificados com pré-disposição à categoria B16, o que não é ruim, mas não podemos nos dar ao luxo de problemas respiratórios.
A guarda chegou, e ao verificar a documentação e um registro da reunião daquele tríbali, feita pelos meninos em seus avatares, acharam que papai estava com depressão e o privilegiaram com O Implante!
Hoje, papai é outra pessoa, vive sempre satisfeito, na moradia do arquipélago verde. Desfez-se de todo o peso de suas antiguidades mas ainda é resoluto com suas memórias, que infelizmente vão se perdendo na degeneração de seu cérebro egoísta, em vez de compartilhá-la no Grande Historiador, o servidor das lembranças armazenadas por todos nós, junto com nossos avatares e que é a base para manutenção da Ordem e da Paz, atributos essenciais para a nossa privilegiada sociedade terrestre! Eu sei, posso não estar sendo original, mas não há quem não se emocione com esse trecho do discurso do Grande Chefe, na ocasião de promulgação da Lei da Sociedade Universal.
Faço um upload dessa lembrança enquanto termina meu suplemento e o energético, para me pré-dispor às boas horas de meu ofício rotineiro, com ele trazer maior progresso tecnológico e tornar o mundo mais justo. Com minha retribuição financeira comprar mais suplementos, para mim e filhos, assim renderemos mais; continuar bancando a dose diária de felicidade de todos nós, isso sem mencionar as induções de água e consumo de oxigênio; afinal ninguém pode fugir disso, faz parte da vida, e A Instituição faz um grande trabalho em purificar o ar e redistribuí-lo com tanta qualidade e segurança.
Além desses meus quatorze pulmões para abastecer, com seus respectivos estômagos, sobra-me o suficiente para o aluguel da moradia de todos e tudo que A Instituição e o grande chefe acharem necessário para a manutenção da vida. Ou melhor, não o que eles acham, mas o que é Necessário!
Que estranho, me corrigi. Cometi um erro de pensamento; Acho que preciso dar um pulo na farmacorp e comprar uns créditos extras de felicidade.
Upload termina.
A refeição acaba.
Uma sirene toca.
Todos saem ordenadamente de “suas” moradias, com suas mentes vazias para mais um turno do ofício neste tríbali.(Não se usa mais dia para designação de tempo pois este termo não faz sentido sem seu antônimo, a noite, já que A Super Cápsula terrestre mantém a atmosfera sempre iluminada, rompendo a antiga dialética da rotação terrestre)
Mente vazia, corpo disposto, ofício em vista; A felicidade, em créditos extras ou não, por fim chega.
Num futuro; Num mundo; Aonde as necessidades são mero luxo daqueles que não têm – ou não querem ter – o saciar de suas vontades.

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