terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Capítulo 29 - Jaz a última pétala

Tudo aconteceu naquele dia. O melhor e o pior de minha vida. Encontrei-me com ela após seus pais irem para a loja. Ela desceu e disse a dama que iria passear no parque, e que fugindo ao costume, resolvera ir só. Dizia-se indisposta a conversas, o que era do feitio daquela que sempre está em sua presença e que hoje fora dispensada. A dama entendeu que podia estar relacionado com a discussão que a jovem tivera com seus pais na noite anterior e que deveria ser dado o silêncio que a menina lhe pedia. Además, não haveria de ocorrer qualquer problema, pois o parque era perto e a garota sabia muito bem se cuidar, embora a família, fosse por hábito desta ou por zelar pela manutenção de um renome de prestígio, um tanto quanto obrigassem que a companheira para menina existisse e permanecesse sempre próxima. Mas hoje não, absolutamente hoje não. A jovem precisaria ficar só.
Saiu de casa, desceu os degraus da soleira e virou à direita em direção ao parque. Acompanhei tudo há certa distância, de olho nela e nos demais que pudessem desconfiar de algo. Duvido que alguém percebeu algo, era muito ligeiro quando precisava sê-lo. Assim como os dias que invadia a estação, que já contei ao meu novo amigo, por mais senhorio que seja. Preciso apresentá-lo a ela, pensei enquanto permanecia a percorrer seus passos.
Ela desviou do trajeto na terceira quadra, com receio de ser vista pelos pais ou por algum comerciante que a conhecesse. Seguiu em direção à saída da cidade. Fui em seu percalço e a perdi de vista. Fora numa esquina e pronto. Sumiu. Ela não se virou em nenhum momento, não sabia que estava sendo seguida. Não pode ter sido tão rápida a ponto de caminhar ou correr a metragem que ininterrupta existe até a outra esquina. Não pode. Será que me enganei, me indagava. Foi em meus devaneio e indignações que fui pego de supetão:
- AHAM! - gritou minha donzela pulando-se sobre minhas costas. Estava escondida na cerca viva de uma casa. Não controlei o pulo para frente, caindo ao chão pelo susto que me fora dado. Ela ria. Daquele jeito inesquecível e belo. Ela ria. Sua covinha se acentuava e seus dentes escondiam-se atrás daquela linda mão coberta por sua luvinha de seda branca com aqueles babados caprichosos.
- Vamos levante-se! Vai dispensar minha companhia e ficar aí o dia inteiro? - perguntou-me com um jeito debochado. Ela não parava de rir de mim. - Venha, eu te ajudo. - Puxou-me e ajudou a limpar minha calça de brim dando tapinhas na minha perna. Enquanto o fazia ela me olhava de relança e aqueles olhos brilhavam e seus lábios insistiam em pequenos risos, de carinho, de ternura.
- Pensei que tinha sumido!, disse mais seriamente.
- Pessoas não somem assim...do nada!, disse franzindo a testa como quem ouve um absurdo enquanto reclinava-se novamente.
- Pensei que íamos ao parque, ingaguei.
- Você pensa demais, disse ela enquanto agarrou minha mão e puxou-se para a estrada para fora da cidade.
Caminhamos o dia inteiro, com devidas pausas para saborearmos as frutas que encontramos em nosso caminho, como as amoras que jaziam vermelhas e roxas naqueles galhos finíssimos de tantos pés que se espalhavam por toda a volta da cidade.
Ela me contava suas histórias e era tão doce observá-la. Nunca me olhava. Contava e as vezes cantava, uma cantiga ou outra, olhando para o chão, para ao longe, para o céu. Só no silêncio que a interrompia que se dispunha a encarar-me e aqueles olhos adentravam o meu ser me paralisando. Tirando-me toda a vida para dar-me outra, que dependia daquele olhar. Os olhos só se cerravam para que então outra sensação me dominasse e toque daqueles lábios faziam estremecer-me a espinha e toda a extensão restante do meu corpo. Do nosso corpo. Sentia o dela vibrando da mesma forma. Seu toque. Seu carinho. Sua pele tão macia e suave, que era impossível ater-me a ela, sempre deslizando e saboreando assim, toda a maciez e o encanto que havia naquela menina.
O tempo passou e o sol a nos admirar circundou o céu, e quando estava para se despedir resolvi mostrar-lhe aquele que há tanto lhe falava. Meu novo amigo. Ela aceitou ir comigo para lá, afinal alguém que me tirava tanta admiração e dava-me histórias tão fantásticas e belas haveria de despertar o interesse naquela que possuía meu coração. Disse que não poderia se demorar, afinal, a loja já estaria para se fechar e seus pais logo voltariam para casa. E sempre que ela não estava presente, arrumava problemas sérios, sem mencionar a face brava e as vezes decepcionada que seus pais a encaravam, deixando-a triste por trazer tamanha desventura ao sonho e a imagem que a sua família tanto queria zelar. Afinal, não era saudável à reputação de uma boa moça aventurar-se da maneira como ela adorava fazer e muito menos transgredir os horários dos respeitosos como advertidamente acontecia.
No percurso até a estação, ela fora continuando suas falas. Sempre tranquilas sobre coisas belas. Sobre a casa no campo que sua tia tinha, e que nos divertimos tanto quando menores. Sobre a lagoa que nos conhecemos e como o tempo passara. As vezes essas lembranças lhe tiravam longos silêncios e eu os entendia e partilhava a dor. Aceitar e impossibilidade de continuarmos daquela forma era-nos lamuriosa.
- Não quero,...Não quero que seja assim....Eu queria estar com você...Eu queria..., lamentava ela em ruídos fracos, sussurados. Muito para não trazer dor a mim que também sentia essas palavras em minh'alma. Eu a abraçava e beijava suas lágrimas. Não queria que ela sentisse isso. Já me era muito custoso aceitar isso e não conseguia. Fazia de todo o dia uma batalha para conquistar o respeito devido para ser seu pretendente. É claro que sabia que por não ter família me era muito difícil ser digno de pretendê-la, mas há anos fazia minhas economias para alguma coisa poder conseguir com isso. Fosse o prestígio que for, a terra, a casa, qualquer coisa seria melhor que ser um bastardo, rejeitado.
Ela não ligava. Nunca se importou. Amou-me desde a primeira lágrima e sei que amaria-me até a última, que por fim depositarei nesta obra, mas a família precisava-se manter tudo que a estruturava, todo o respeito conquistado e mantido para toda a sociedade local. Galguei o meu de forma sacrificada. Mas não se comparava ao deles. Saímos escondidos. A dama sabia, permitia. Me adorava. Eramos parecidos, vivemos no mesmo bairro e sempre teve um carinho por mim, desde pequena. Mas os pais de minha querida não. Nunca toleraram-nos. Na noite anterior ela disse algo a eles que eu não sabia ainda naquela hora, e que em breve eu iria saber, mas isso foi o suficiente para levar seu pai à loucura. Quebrou móveis e louças antigos, caros, raros. Sua mãe se prostrava a chorar na cadeira e ele insistia em gritar e gritar com minha menina. Ela demorou a contar-me isso. Era dolorido contar. A pausa fazia parte de sua fala assim como as lágrimas. Por fim disse-me o motivo.
- Quero viver com você. Seja como for, aonde for....não importa. Se não podemos nos casar para não ferir o prestígio dessa família, então não quero pertencer a ela. Largo tudo, largo. Quero viver com você onde quer que seja, mas que seja com você! - Disse-me ela numa rapidez desesperada, sufocada em lágrimas e abraços. Um aperto tomou-me o corpo e o coração. Era ela. Era o que eu estaria a fazer a ela. Arruiná-la. Minhas economias não seria o suficiente para dar-lhe a vida que estava acostumada e eu não saberia como fazê-lo. Seu pai lhe disse, depois de tanto urrar, que se ousasse me ver outra vez, iria deserdá-la. E ela ali, ao meu lado. Apareceu-me sorridente hoje, como se nada tivesse acontecido. Como eu a amo. Não tinha como não amá-la.
Disse-lhe que me preocupava com ela, ainda mais agora depois de saber disso. Ela lamentou ter me contado e que seria melhor não ter dito. Para eu não temê-la. Ela sabia o que fazia. Queria fugir comigo.
Silêncio novamente.

Chegamos depois de um breve caminhar à estação. O clima entre nós era opaco e a quietude nos afastava. Nossos medos, nossos desejos. Procuramos por tudo e não achamos meu amigo. A busca nos aproximou e logo estávamos de volta aos sorrisos e carinhos. Me desculpei e ela disse entender meu pensar, mas que eu não devia. Ela já tinha feito a escolha. Não ia mais voltar. Receei.
Ela ficou em silêncio e foi andando pela plataforma. Eu fiquei parado, observando o trem que se aproximava no lado contrário ao que ela estava.
Minha menina me encarava com aqueles olhos castanhos. Olhos profundamente opacos, como um céu imensamente estrelado habitando seu interior. Havia tanta dor naquele olhar que o único vislumbre de alívio era justamente para onde ele olhava. Para mim. Ela conduzia suas pernas, seus passos de forma impensada. Aleatória. Eu permanecia parado em minha impaciência. O trem se aproximava e eu procurei com os olhos aquele meu amigo, que por ofício deveria estar guardando os trilhos. Não estava. Não o via desde a noite em que lhe trouxe o jornal. Ele chorou e disse para eu ir.
- Será que ele me deixou, me perguntava. Ingênuo de minha parte colocar eu e ele num relacionamento dessa maneira. Incrível que essa ingenuidade tenha se mostrado tão realmente bela, embora de extrema sofreguidão. Lembro que repensei na hora: Como ele poderia deixar a estação assim, ainda mais ele que sempre estava reclamando dos jovens que vinham a noite. Me distraí em tais pensamentos.
O trem desacelerava ao se aproximar. Meus olhos passaram vagarosamente para o outro lado. Para a direita de mim buscando minha LaBelle, que fazia tanto jus ao nome francês. O vulto tomou forma primeiro antes de vê-la completamente, e assim, à vi desequilibrar-se naqueles saltinhos, que o direito, ao movimentar-se de costas, acabou por encravar-se num buraco no chão irregular e ela perdeu o equilíbrio.
Antes de compreender tudo aquilo, uma energia apoderou-se de mim e tentei mover-me em sua direção, mas ela caminhara muito nesses devaneios. Ela já começara a cair. A cair. A cair...
Seus olhos me olhava atônitos. Lamentavam a possibilidade daquilo acontecer. De ficarmos longes. Separados. Gritavam pra mim. Me ordenavam pegá-la nos braços e beijar-lhe para todo o sempre. Nunca mais soltá-la ou permitir que se afastasse.
Comecei a mexer-me. A principiar uma corrida. Mas era tudo lento de mais. Ela já estava em queda por sobre a linha do trem. Trem que se aproximava à minha esquerda. Freando. Chegando cada vez mais, cada vez mais, cada vez mais.
Ao longe, lá embaixo, comecei a ver enquanto corria uma luz fraca de um lampião a se dirigir ao local que minha querida caiu. Lembrei do Capitão.
- Seria ele, me perguntava. Ele realmente não ia abandonar isso assim. Uma parte de meu pensar queria assumir que ele não abandonaria a mim assim. Algo me tranquilizou ao ver aquela luz perto de minha menina, mas não desacelerou meus passos. Nem ao trem. Que já me alcançara e se dirigia à ela. À luz.
Corri o máximo que pude. A máquina era mais veloz. Tentava alcançá-la no grito, como tentara afastá-la, frená-la anteriormente. Gritava e lágrimas me queimavam o rosto e não deixava de lembrar aqueles olhos que conclamavam o meu berrar. Nunca mais esqueci. A maquina chegava.
Chegou.
Cai ao solo a gritar o máximo que me era permitido, pois ao último momento que pude ver, a luz do lampião permanecia ali embaixo, no meio, na frente. Pude vê-la caída quando o trem se aproximou e iluminou-a, com muito medo nos olhos. Com uma tristeza por estar só. Como queria estar com ela. Como queria que fosse eu o caído lá. AHHHHHHHH. Não podia deixar de gritar e não ter forças para mais nada a não ser esmurrar o chão da plataforma e em seguida a máquina.
O meu amor. Que num último relance pude ouvi-la em mim à dizer: Te amo.

Do trem desceram alguns homens e outros diziam para movê-lo para frente, para tirá-lo do local. A dor colocou-me em choque. Em silêncio. No chão à chorar e não ouvir. Não ver. Tive a impressão de ouvir o que diziam, mas não dei atenção. Alguns procuravam, xingavam e queriam saber onde estava o guarda trens.
O trem saiu.
Ali, onde caiu LaBelle, estava agora sua corrente de prata, que tanto adorava. Pude ver que ao lado, caída e um tanto trincada, jazia uma velha garrafa arrolhada. Não me lembro o que senti. Não me lembro o que pensei. Muito desse dia pertence à uma parte de mim que não quero reviver. Só consigo descrever até onde fui, minhas emoções e idéias. É doloroso demais ir adiante. Mas posso dizer que era só isso que estava ali. Sem marcas, sem sangue.
Ela desapareceu.
Desci aos trilhos e peguei sua corrente. Meu choro atrapalhava minha vista e enquanto o segurava firmemente junto ao peito, aproximei-me da garrafa caída.
Lamento não saber descrever o que senti, apenas lembro-me de uma paz e serenidade se apoderando do meu desespero latente. Ninguém mais existia para mim. Apenas eu e esses objetos. Peguei a garrafa e ela quebrou-se em minha mão, ficando apenas duas pétalas. Duas lindas pétalas.
Minhas lágrimas caíram sobre elas e não pude evitar o choro que novamente me assolava. Juntei as mãos e apertei ao peito em lembrança da minha querida adorada. Não concebia a idéia dela ter desaparecido. Nunca tinha visto um acidente assim. Para mim, ela estava por ali, na frente da máquina talvez. É desolador pensar. Era muito também.
Após um tempo percebo o que tinha em minhas mãos novamente. Meus olhos caçavam aquele colar como que querendo achar o corpo que o habitava, ali, nos meus braços, me olhando, me amando. O colar agora reluzia em outro tom. Um brilho majestoso como se nunca viu igual. Demorei ao olhar a outra palma que já estava aberta à tempos e que não possuía mais nenhuma pétala.
Percebi que uma, sem dúvida passara a integrar aquela corrente que fora de prata, e outra, jaz até hoje impressa em minha mão.
Está estampada na minha pele como se pertencesse à ela. Não sai. Até porque não tem porquê sair. É a minha pele agora. As linhas digitais continuam nela e possuo sensibilidade normal neste local. Mas claramente é uma pétala.
Uma linda pétala que em todo luar completo reluz, e aquece meu coração desde então. Posso ver até os pontos onde minhas lágrimas caíram nela antes de unir-se à mim. É tão bela.
A guarda começou a chegar naquele local e resolvi correr. Não sei dizer o que norteava minhas atitudes, apenas o que fiz. Corri e corri. Fugi de lá como se quisesse fugir do ocorrido. Fugia com a corrente em mãos, sempre atada ao peito. Fugi para nunca mais voltar.

Demorou muito tempo para eu saber melhor o que houve. Assim, soube que ela nunca foi encontrada. Nada. Nem qualquer coisa que desse alguma pista sobre minha menina. Ouvi relatos que o que aconteceu aquela noite foi apenas um jovem gritando na estação e o trem parou assustado para saber o que era. Soube que o maquinista teve a impressão de ter visto alguém cair na linha, mas logo em seguida dois homens chegaram e tiraram essa pessoa de lá. Só pode dizer que um tinha cabelos claros e outro um lampião. Fizeram várias buscar na estação e não encontraram nem passos e qualquer coisa que comprovasse essa história. Só haviam pegadas do garoto que não demoraram a saber que era eu.
LaBelle nunca voltou pra casa e seus pais pensaram que fugimos. Enlouqueceram. Lamentaram. Não quis saber mais sobre eles. Nem que fim levou a dama de minha menina.
Estranho pensar a calma que consigo narrar esses pontos. Talvez o tempo nos faça calmos, ainda mais quando estamos acostumados à rememorar certas lembranças como essas. Acostumados talvez.
Durante muito tempo lamentei, e não sabia nem o que pensar, a não ser naquele fatídico dia. Porém, com calma pensei em tudo que vivi com ela e com o Capitão. Suas histórias e como tudo aquilo se encaixava nas pétalas, na garrafa, no sumiço.
Não sei dizer ao certo sobre tudo isso. Mas entendo que o "francês" haveria de ter salvo seus sonhos naquela garrafa, para reencontrá-los na igualdade que foi tratado por meu amigo, e assim poder sentir a tranquilidade de liberá-los ao mundo. Aí, o guarda trilhos que aprisionou seus sentimentos, mesmo que sem querê-los, somente se sentindo a vontade com a minha amizade, ainda mais depois de ter aquele jornal em mãos. Podendo assim, livrar-se do peso de prender suas emoções, seu perdão.
E assim, restava-me essa jóia, que resolvi aprisionar num frasco qualquer. Mas desde então não posso ver seu conteúdo. Nem mais quebrá-lo. O máximo que consegui foi forçar um pequeno buraco na rolha que o sé-la.
Talvez, essa garrafa não pertença mais a mim. Creio até que nunca tenha pertencido, mesmo que eu a tenha selado. Afinal, reside ali o colar dela com a última pétala, e que ambas nunca foram minhas. Apenas me coube cuidar delas.
Após tanto repensar, acabei por amarrar o frasco numa pedra e arremessá-lo ao mar aberto. A pedra à de guiá-la ao fundo e o buraco na rolha, de favorecer que permaneça lá até que então o verdadeiro possuidor possa ver seu conteúdo. Possa quebrá-la. Não é questão de cuidar dela. Nunca foi. Assim como a menina que não queria ser cuidada, apenas queria estar junto, as pétalas ainda hão de unir-nos. Eu sempre estarei naquele recipiente no fundo mar. A aguardar. Embora o tenha fechado, nunca fui eu o verdadeiro possuidor daquilo que guardei.
Assim, só resta esperar que este retorne.
E quem sabe então, romper o pote. Eu me ver livre de tudo isso. Que àquele à quem o frasco pertente venha para desaprisionar o meu coração, que jaz no fundo do mar, numa garrafa fechada, porém, que possui uma abertura para difundir, mesmo que lentamente, ao mundo o amor. O meu amor. Amor que fora sagrado à eterna dona do meu coração, LaBelle.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Lembranças de Verão

Reencontrar.
Uma das maiores delícias da vida.
Seja como for, mas que seja.
As vezes pode ser algo que nem se lembrava mais, porém numa conversa aquilo ressurge.
Renasce.
Nasce com uma beleza a mais, pois já surge com uma significação que à primeira vista talvez não tivesse.
As vezes o reencontro surge num perfume,
numa música,
num local.
Coisas assim que eternizaram pessoas.
Momentos.
Sensações.
Nesses casos, surge um reencontro consigo mesmo.
Um eu que alterou-se tanto a ponto de esquecer aquilo.
Distrair-se deveras.
E há quando algumas das piores situações tornam-se lembranças boas.
Engraçadas.
E como as piores pessoas são lembradas apenas para que novamente as esqueça.
E é bom lembrar-se que elas apenas lhe pertence à memória.
Um homem acorda.
Sem vontade de acordar banha-se.
Se arruma e na hora de sair de casa o vento lhe trai.
Lhe traz.
Um cheiro de chuva.
Um cheiro de flor.
Lembra-se da sua avó viúva.
Lembra-se com muito amor.

A vida ressurge em lágrimas
Que esses olhos tinham.
Já que esqueceu as cócegas.
Que aqueles dedos lhe faziam.

O tempo lhe foge à mão.
O vento o leva embora.
Só sabe que lamenta em vão,
o passado que agora chora.

Esse lembrar lhe fera a alma,
Coisa que esqueceu que tinha.
A vó lhe trazia calma,
sua lembrança lhe mais ainda.

Agora o homem chora,
da garagem à cozinha.
Mal sabe que ali mora,
outra velha lembrancinha.

Sorrindo lhe mostra a face,
uma foto bem velhinha.
Vem de tempos gloriosos,
"essa bela lembrancinha".
Sozinha no porta retrato,
prostrava uma senhorinha.
em diminutivos carinhosos,
Sua amada avozinha.

Ignorada até então,
Como às velhas rimas.
Que fazia o velho barão,
Sobre suas pequenas primas.

E toda uma infância surge,
Como se nunca tivesse sumido.
O velho trabalho é deixado,
À se pensar o que poderia ter sido.

O vento vai se embora.
O perfume se levanta.
O rosto volta à si,
Quando o relógio velho canta.

O homem caminha até o carro e chorando se vai.
Logo se distrai,
Logo se esquece.
Esperando, sem pensar, que o vento venha lembrar,
Que aquele perfume não perece.
Floresce.
Se revigora e jaz, nas memórias de mais um.
D'um.
Dele.

Reencontrar,
No fundo de uma geladeira qualquer.
Atrás de distrações noturnas,
Uma galão d'águas profundas.
Que não só mata a sede.
Não só vence o mormaço.
E que ao beber se chora de lembrar,
toda uma vida de doçuras,
que embora nem tudo possa rimar,
para mim sempre haverá a ternura,
de nessa água poder saciar,
toda minha saudade.
Saudade.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Na ausência de dois olhares

Inveja.
Como não ter?
Por que haveria de ser ruim tê-la?
Não tê-la.
Tê-la.
Tenho-na.
...muito.
Me tortura,
me afaga.
Traz-me à ilusão de realidades.
Recriações em hipóteses.
À Indagações.
Suposições.
Possibilidades.
A maioria delas me machuca.
Me agride.
Destroça os meus anseios.
Como poderia assim não ser?
Como eu poderia...
Não sei.
Não consigo ignorá-la.
A memória,
O pensar,
Você.
Consome minha vivência pois é parte de mim.
Uma linda parte.
Me pergunto onde está,
Se está rindo.
Ah, se está rindo...
Posso ouvir o gargalhar que sufoca-me.
Condensa meu peito em espasmos cardíacos.
Que tentam, tentam, tentam, tentam...

Invejo.
Não você.
Nunca você.
Mas todos os demais.
Todos que podem lhe ter em vista agora.
Que podem admirá-la, feliz ou triste, em ser você mesma.
Eu a admiro,
Sempre que eu quero.
Estou sempre a admirá-la.
Em meus pensamentos.
Fracos,
Escassos,
finitos.
Se, não é em lembranças,
Você é a mim.
Minhas idéias, vontades e ações.
No limiar do meu limitado pensamento.
Na imaginação.
Crio-na doutra forma para experimentar a experiência de tê-la novamente.
Ter novas memórias.
As antigas se deterioram por tanto serem relembradas.
Sempre lamentei não poder guardar cada detalhe de seu rosto.
E nisso meu admirar também falha.
Volto a invejar.
Seja quem for, contanto que esteja por perto de ti.
Quem sabe lhe tocar,
Lhe fazer rir.
Te abraçar.
Meus abraços.
Quem sabe até lhe beijar.
De despedida ou de chegada.
Ou daqueles que surgem no meio da conversa interrompendo sua fala,
ou a dele,
ou a dela.
E eis a loucura aflorar em mim.
E toda a fantasia minguar.
...
E eu aqui, a recriar até isso.
Não há posse sobre ti,
e o invejar é tão doce.
Pois tudo que ele me remete é sua imagem.
Sua presença, mesmo que fruto de minha insanidade, me conforta.
Me confronta sobre o devir,
e me faz pensar: Quando deixarei de invejar?
...
No dia seguinte,
caminho à amaldiçoar.
Todos!
Todos que eu vejo dá-me raiva.
Pois sei que um desses,
Esta noite,
pode ter ido dormir,
depois de ter beijado o que de mais belo há pra mim.
De mais importante.
E que há,
de ter repousado,
sem nem imaginar,
o que aquela boca,
aquela menina,
para alguém distante possa significar.
Um estranho teve por um momento o mundo de outrem.
E outros terão.
E como terão.
Mais do que eu jamais tive.
Mais do que eu jamais pensei em ter.
E mesmo assim,
Eu sonhei.
Eu cri.
E num último invejar,
me despeço.
Para nunca mais lembrar,
te recriar.
...
E na pureza de sua ausência,
um "oi" perdido acalenta.
Vivifica como se estivesse aí.
Como se sempre estivesse.
As palavras sempre foram nossos meios,
escritas,
grafadas.
Mas o mero pensar em você me acalma.
Me tira o poder de cravar em letras e sílabas.
Não posso mais invejar.
Só sinto falta.
Falta de algo que nunca tive.