sábado, 23 de março de 2013

Degringolar


Palavras só servem pra sistematizar o que já existe em si.
Já eras-me avó antes que eu compreendesse os sons;
antes das letras e dos silêncios entre elas.
Já era neto antes da primeira luz tocar-me a vida;
antes do primeiro toque me acarinhar.
Já existíamos um para o outro sem que os dois soubessem simultaneamente.
Tardei a entender.
Tardei como tarde quem nasce;
como quem não enquadrou os sentidos em formas.
Formas que não suprem a grandeza das coisas,
mas as habilita para o mundo dos homens;
as coordena ao desenvolver-se destes seres.
Conduz ao tal compreender.
Compreendo.
O universo que tocou-me desde antes de entender o sentir,
não é mais.
Nada disto será mais.
Eis a lógica dos seres.
De todos eles.
Persistirem.
Continuarem.
A revés de todo embate que lhes aflinge;
de toda física que os toca,
e retoca,
e os encaminha para o fim.
Morre o ser que não mais pertence a nada.
O desenraizado;
desprotegido;
desacreditado.
A verdade se constrói na incompreensão juvenil,
e desenrola-se na desilusão senil.
A senilidade inicia-se com a jovialidade,
que só definha,
e definha.
E leva consigo o certo;
o certeiro;
as certezas.

Ao passado que se esvai

À minha infância,
tempos extra-humanos e materiais,
deixo o simples desejo,
que não me deixe mais.
Que sem o seu lampejo,
um simples abraço,
ou um tênue beijo,
nada mais há de ser.
Nada mais hei de querer senão vivificar minhas lembranças.
Tê-la novamente ali.
Todos nós.
Sou deveras materialista pra crer no tempo,
imagine à outras crenças mais.
Porém vivo o deleite,
que tanto há de me testar,
pois a cada novo dormir,
a cada novo sonhar,
me apareces tu,
e juntos um dia mais vamos ficar.
O que resta ao despertar,
estando o sol em seu lugar,
e tudo mais ao transitar,
sem jamais voltar a ter,
aquela casa,
aquele lar.
Aqueles olhos carinhosos,
dedos delicados, caprichosos,
e tranquilidade exemplar;
Sem poder ter,
acima de tudo,
o seu chá pra eu tomar,
e à minha vó pra retornar.

Nega

Triste nome que machuca.
Fere até o que não se sente são.
Arranha até o que não lhe pertence e
faz tormento à inquietude que há muito não há.
Desolação.
O que mais há de ser senão o desolável;
O incomensurável ato da dor.
Aquilo que não se afasta,
não se retira,
não se expulsa.
O Inexpugnável sentir.
O vazio e o insustentável.
A abundante tristeza que entorpece os sentidos;
os pensamentos.
Nada mais há.
Nada deveria de haver.
Nossa dor fazemos nós mesmos.
O sofrer é o delírio do ser.
A amargura é fruto do eu.
O incompreensível brota do anseio em compreender.
A distância mata mais que a morte.
Esta retira a agência,
Aquela a lembrança.
O enebriamento do cotidiano afasta a dor;
afaga-a e alimenta.
Explodirá!
É claro que explodirá.
O vazio se engrandece além da forma de si próprio.
Expande e dominará.
E domina.
Corrompe e destrói.
Entontece tudo que outrora foi.
O afastamento é impossível.
A distância é nula.
Defronta-se com a triste e solitária realidade do eu.
Do eu que tantos seres possui.
Possuía-na, minha avó.
Estás em mim para além do entendimento.
Posso descobrí-la a cada novo teste;
a cada novo ato me vejo no passado;
me vislumbro com lembranças que nunca mais lembrei.
Me deparo com a incerteza de tudo,
onde antes tão firme era.
A rigidez das certezas foram contigo.
Já desmoronavam há tempos.
Ruiram.
Compreendo que pouco há a compreender.
Tal verbo pertence à uma esfera do todo,
insuficiente para projeções universalis.
O tempo dos homens é o da insegurança;
das incertezas.
O estável pode enraizar-se nas edifícações humanas,
mas pouco é aos olhos do acaso.
Debocham-lhe.
Mastigar-lhe-ão as afirmações;
as firmezas.
Nada há, minha senhora.
Somente o vazio que permitiu-me criar,
após tamanhas raizes que deu-me a ser.
O que restarão aos seres sem suas memórias?
Edificam-lhe e os possibilitam à obras tais.
Basta uma ocasionalidade,
um inesperado ato,
uma triste surpresa,
e nada mais serão.
Tiram-lhes o que era eterno.
O que deu-lhes base à crer na verdade,
à crer que tal existiria,
e como atributo,
portaria a eternidade.
Tiram-lhe e todas as demais certezas ruirão.
Restarão à seus olhos apenas crostas,
cascas vazias de um mundo que não mais é.
Fora, é claro que fora,
mas na mente que pode acreditar.
No ser que pôde viver ao seu lado, vó.
Apenas isso.
Os ofícios da rotina,
que deveriam conduzir ao esquecimento,
ou mero abrandamento da dor,
resultam em sua contradição.
Aparecem fortes na determinação da fuga,
mas frágeis em si.
Não suportarão!
Nada restará.
São esqueletos frios como aquele que repousa.
Os sentidos se perderam.
Estes só podiam existir pela certeza de poder me abrigar em ti.
De poder repulsá-los a qualquer momento e voltar aos quebras-cabeças.
De desenhar nas aulas de tricôt.
E agora, hei de agir e edificar novos abrigos?
Isto seria mais um novo distrair.
Conduzir a certeza das coisas.
Estas são frágeis.
A certeza apenas... era.
Não deveria depender do eu.
Nunca!
Seria a negação de si própria.
E é assim que me aparece.
O que fora certo,
não mais é.
Não quero controlar.
Isto foge a forma da vida.
Não temos o controle e a certeza de nada.
Não devemos induzí-la.
Não é isso que me mostra?
Seria imprudente e desrespeitoso à tais lembranças
não entendê-lo.
Nada mais é, dona nega.
E não há tristezas em aceitar,
senão no vazio de uma velha crença.
De uma crença onde tudo era;
onde tudo poderia ser.
Até o último instante, e além, me protegeu disto.
Fora eu o último a aceitar a fatalidade.
Fugia dela com a certeza de eliminá-la.
Eliminei de mim momento ótimos.
Como aquelas noites de sexta ou sábado dormindo ao chão de vosso quarto.
Ou a compreensão rara ao meu tipo de humor que lhe fazia rir.
Acreditei, para fugir disto, em deveras outras coisas.
Todas tão frágeis, para suavizá-las, quanto a isto.
Muito mais, na verdade.
Construiram vazios que explodem e hão de explodir.
Nada além de construções minhas.
Através de minha fé nestas,
outrora, certezas.
O mundo dos homens é apreensível,
desvendável,
conquistável.
E justamente por isso é simples;
entediantemente simples.
Incompleto como reflexo de seu criador.
Haverão vazios neste enquanto permitir-nos.
A completude,
sem dúvida há,
nas certezas que trazemos do passado;
nas certezas que a vida nos cerceará.
Em algumas que podemos construir,
mas serão frutos de nosso controle;
de nosso querer.
Serão miniaturas do nós,
e sobre nossa guarda,
ficaremos à margem de nós mesmos.
O além existe no que resiste,
no que resta e restará,
de um tempo onde o certo havia;
onde o certo há.
E as mais puras e doces lembranças,
apenas machucarão mais,
pela ausência de materialidade que elas nos trazem.
Do abrigo que tanto carece o homem.
Da certeza de algo além.
Algo supra si.
Algo que nos tranquilize por nossa ínfima existência.
A certeza se instaura no controle externo.
No que foge ao eu.
E que certeza me restará,
quando não mais houver,
tudo aquilo que me fez ser;
tudo aquilo que acreditei ter;
tudo aquilo que ensinou-me a amar.

À Russa

Aqueles morenos cabelos que deslizam em sua face.
Morenos tão perfeitos que nem o são em si.
São castanhos, num tom tão reluzente.
Daqueles que reluzem todos os tons do ambiente.
Seus traço retos,
suaves,
singelos.
Delicados a sua forma.
Ríjos mas ternos.
Conformadores de uma beleza nova.
De uma beleza sua.
Com os esvoaçantes fios rebeldes.
Há rebeldia,
massiva,
em sua forma.
Ressonante como uma grande sinfonia,
ecoam em sua face instrumentos mil;
notas tantas.
Tudo numa perfeita harmonia de um encanto novo.
Um encanto belo.
Segredado a si mesmo.
A delicadeza do nariz conduz como um fio
à jovial boca que tanto mais segredará.
Distinta pela marca inferior,
como demarcando o encontro de traços seus;
os finais da lisa face de corte fino.
A tez singularmente feita pela pluralidade de encantos,
reluz em breves tons amenos,
nas certezas de um olhar que tanto tem a falar,
mas tão pouco vem me dizer.
Um olhar de mistérios.
Dos mais profundos.
Um olhar de sonhos mil,
por mais pragmática que seja a pupila,
a sombrancela suporta em si,
a suavidade da existência em seda.
Da existência sútil.
Na mente pensante,
reluzente no olhar firmemente carinhoso,
muito há de especular,
mas não há espaço aqui,
senão para adular;
senão pra refletir.
Sinceros aromas teus,
percorrem o ar ao seu redor.
Amores como os teus,
não vivem em dó menor.
Mistérios são o que há,
sem dúvida hei de dizer,
em seu jeito de ser;
em seu jeito de olhar.
O desejo é copiá-la;
decifrá-la;
transpassar-lhe os mistérios vís,
e dos enigmas teus,
presentes no brilho dos seus.
Mas imprudente,
e mais ainda,
a morte do meu,
seria se ousasse tal compreensão dos seus.
Uma vez que encantos assim,
servem ao artista que vê;
Servem à dúvida que há.
E que se instaurará a cada novo reencontrar;
A cada novo viver.
A inquietude que tal face dá,
serve a desassossegar;
Serve a desilenciar
um espírito mudo que volta a cantar;
que volta a sentir o sabor do ser.
E que acorda a pensar e que chora ao dormir,
transtornando seu viver com a dúvida sem fim;
O que será de mim?
O que há em ti?